Na Sexta-feira da Paixão, fiéis recordam as últimas palavras de Cristo na cruz

Foto: Luciney Martins/O SÃO PAULO

Após a Ação Litúrgica da Paixão do Senhor, presidida pelo Cardeal Odilo Pedro Scherer na tarde da Sexta-feira Santa, 29, na Catedral da Sé, aconteceu a procissão pelas ruas do centro histórico da capital paulista, recordando o sepultamento de Jesus. Os fiéis levaram consigo as imagens de Nosso Senhor morto e de Nossa Senhora das dores, em meio a cantos e preces. Ao longo do caminho, houve “canto da Verônica” que recorda a piedosa tradição da mulher que enxugou o rosto ensanguentado de Jesus no caminho para o calvário.

Ao retornarem à Catedral, aconteceu o tradicional sermão das sete palavras de Cristo na cruz, que este ano, foi proferido pelo Frei Mário Luiz Tagliari, Reitor do Convento e Santuário São Francisco.

Durante a pregação, o Frade franciscano convidou os fiéis a refletirem sobre o mistério do amor de Deus expresso pelas palavras de Jesus no alto da Cruz e o que elas significam para cada cristão.

“A narração da Paixão de Cristo constitui a unidade mais ampla de todo o Evangelho, mesmo que tenha abordado um tempo muito breve da vida de Cristo. Os evangelistas pensaram em nos conduzir ao coração da Boa Nova”, afirmou o Pregador, sublinhando que o relato bíblico da Paixão buscou dois objetivos:

“O primeiro, responder à pergunta: Quem é Jesus de Nazaré?  Todo o itinerário de Jesus desde a Galileia até o momento decisivo no Calvário, debaixo da cruz: ‘Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus”, confessado claramente pelo centurião romano’. A história terrena de Jesus de Nazaré se conclui com esta verdade: o Messias confessado por Pedro, é um messias crucificado”, explicou.

“O segundo objetivo da narração da Paixão é um ensinamento aos cristãos que leram ou escutaram este relato: ser cristão comporta seguir o caminho que Jesus fez, confessá-lo com Filho de Deus, participar da sua morte para ressuscitar junto dele. O Caminho através do Calvário não é só o caminho de Jesus, mas o de todos aqueles que quiserem conhecer Deus e com o convite que nos faz para nossa salvação: “Quem quiser ser meu discípulo, venha atrás de mim, tome a sua cruz cada dia e me siga”. (Lc 9,23).

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Leia, a seguir, os principais trechos do sermão:

Primeira Palavra: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23, 34a)

Sexta-feira Santa, o dia mais longo do Evangelho. Uma pergunta, não só hoje, mas sempre foi feita. Porque Jesus de Nazaré, “Homem credenciado por Deus, junto de vós, pelos milagres, prodígios e sinais que Deus realizou entre vós, por meio dele, como bem o sabeis… e vós o matastes pregando-o numa cruz” (At 2,22-23)? Jesus, pede perdão ao Pai, pelos malfeitores que o crucificaram na cruz. Estas palavras de Jesus testemunham que Ele aceitou a missão que o Pai lhe confiou, tornando-se o salvador do mundo. Esta palavra é a manifestação do amor pleno de Deus pela humanidade. O anjo já havia anunciado a Maria, que o menino nela gerado por obra do Espírito Santo se chamaria Jesus Salvador, redentor nosso. Como Jesus não perdoaria os seus algozes, malfeitores, autoridades romanas e religiosas judaicas, que decidiram a sentença a partir do povo reunido naquela sexta-feira que precedia a Festa da Páscoa Judaica, dizendo: CRUCIFICA-O? Ele que havia ensinado os apóstolos a rezarem no Pai-Nosso, “Perdoai as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”? Como não perdoar os malfeitores, quando ele responde à pergunta de Pedro: quantas vezes devo perdoar o meu irmão, até sete vezes? Não te digo sete, mas setenta vezes sete? Jesus pede perdão ao Pai, porque Ele é a face misericordiosa do Pai. Porque a misericórdia é um dos maiores atributos de Deus. Porque Jesus disse no Evangelho e diz hoje para cada um de nós: Sede misericordiosos como o Pai é misericordioso! Estamos aqui batendo no peito e pedindo ao Pai perdão e implorando a sua misericórdia.

Segunda Palavra: “Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43)

Ele [Jesus], que durante sua vida pública manifestou seu amor preferencial pelos pecadores, prostitutas, pelos considerados não dignos e justos. Por ser considerado amigo destes, nada mais justo do que ser crucificado com eles. Um destes malfeitores, crucificado ao lado dele, se agarra à vida. Não quer morrer e apela ao que entende de messianismo. “Salva-te a ti mesmo, e salva nós também”. Não é um ato de fé, pois ele não teme a Deus e tampouco acreditou que Jesus era o Cristo, o ungido de Deus, o messias anunciado. Para ele também o messias seria um homem revestido de poder, riqueza e exército que derrotaria os romanos e instauraria um novo reino, como o foi de Davi, Salomão. Hoje ainda muitos pregam uma religião cristã baseada no poder, riqueza e eliminação dos que pensam, vivem e se manifestam de modo diferente. Também hoje não entendem o que é mesmo Reino de Deus, ou não querem entender por estarem apegados demais às riquezas e poder que a religião confere a eles. O Reino anunciado por Jesus é um modo de viver. Deus é o centro de nossas vidas. Jesus é o nosso único mestre e nós todos somos irmãos e irmãs, independente do que cada um é. São João em sua carta nos diz de forma contundente: Se dizes que amas a Deus que não vês e não amas ao teu irmão que vês, teu amor a Deus é mentiroso. O malfeitor crucificado, dito por nós “bom ladrão” é o único entre os malfeitores, algozes, soldados que chama Jesus pelo nome: “JESUS, LEMBRA-TE DE MIM QUANDO COMEÇARES A REINAR”. Acolhamos com grande atenção e esperança estas palavras de Jesus ditas do alto da cruz: “HOJE ESTARÁS COMIGO NO PARAÍSO”.

Terceira Palavra: “Mulher, eis aí o teu filho. Filho eis aí a tua Mãe!” (Jo 19, 26-27)

Podemos imaginar a crise que se estabeleceu sobre os discípulos desde que Jesus lhes fez o anúncio da paixão. Eles deixaram tudo para trás para seguir Jesus, porque acreditavam que realmente ele fosse o libertador, o salvador. Agora o ouvem falar de paixão e morte. O veem sendo julgado e condenado à morte e ser crucificado. Mesmo que tenham ouvido Jesus lhes dizer: Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga. Quem de nós suportaria com fé a derrota, o sofrimento, pensando que através deste caminho se cumpre a salvação de Deus? Jesus não veio para anunciar o Evangelho, a boa nova da paz, do bem, da salvação?  E como anuncia a cruz, a morte? É ainda o salvador? É nesta hora que se manifesta totalmente o amor de Deus por nós. Amou de tal forma os homens que deu seu próprio filho. Se amamos de fato a Deus devemos subir o calvário. Ali podemos compreender o que Deus fez por nós. Feliz aquele que não se escandaliza de mim. Feliz aquele que aceita sua cruz para condividir a glória da Ressurreição. Aquela que todas as gerações a proclamaram bem-aventurada é Maria de Nazaré, sua Mãe. Na anunciação ela disse sim: Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra. Foi com este espírito que Maria avançou com fé o caminho proposto por Deus. Estava ali, neste momento terrível. Seu filho está pregado na cruz. A ela foi dito um dia que seu filho seria grande, o Senhor lhe dará o trono de Davi, seu Pai. O seu reino não terá fim. Mas neste momento seu filho agoniza na cruz. “Mulher eis teu filho, filho eis tua mãe! Maria é mãe de todos os viventes em seu filho Jesus. Maria, a mãe do Senhor e pela vontade de seu filho, nossa mãe e mãe da Igreja. No seu Oficio da Paixão, São Francisco de Assis assim compôs uma antífona a Maria: “Santa Virgem Maria, entre as mulheres do mundo, não nasceu nenhuma semelhante a ti, ó filha e serva do altíssimo e Sumo Rei e Pai celeste, mãe de nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo, esposa do espírito Santo: roga por nós, com São Miguel arcanjo e com todas as virtudes dos céus e com todos os santos, junto a teu santíssimo e dileto Filho, Senhor e Mestre”.

Quarta Palavra: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46; Mc15,34)

O sentir-se abandonado pelo Pai é centro da agonia de Jesus. O pedido que fez ao Pai de afastar o cálice do sangue, da dor e do sofrimento chegou e deverá agora experimentá-lo até a última gota. É a solidão completa de quem foi odiado e abandonado pelos homens a quem amou. Jesus experimenta até o fundo o silêncio de Deus, Ele o Filho de Deus. Seu grito: MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE ME ABANDONASTE? Não tem resposta. Porém, antes de ser lançado neste batismo de dor, que será a sua morte, Ele celebrou a ceia pascal com seus discípulos. “ISTO É O MEU CORPO, ISTO É O MEU SANGUE DADO POR VÓS. ESTE CÁLICE É A NOVA ALIANÇA NO MEU SANGUE DERRAMADO POR VÓS”. Nestes gestos Jesus revelou aos seus Apóstolos o significado de sua vida e de sua morte. Estamos diante do momento mais duro da agonia. Dos doze apóstolos que Ele havia amado e escolhido, um o traiu, outro o escolhido para ser o líder o negou três vezes, os três que o acompanharam no horto das oliveiras dormiram. Mas no momento da prova, Jesus reza, “Abbá, (Paizinho), nos se faça a minha vontade, mas a tua vontade” (Lc 22, 48). No meio da mais absurda tragédia, Ele permanece fiel ao Pai.

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Quinta Palavra: “Tenho Sede!” (Jo 19, 28b)

Aquele que disse à Samaritana, à beira do poço, ao meio-dia, depois de uma longa caminhada debaixo de um sol quente, que quem bebe de sua água jamais teria sede, agora na cruz diz: TENHO SEDE. A bebida oferecida a Jesus é um composto de água e vinagre que servia de refrigério aos soldados cansados e com sede. Mas a sede de Jesus é mais que uma sede de água para molhar seus lábios ardente de febre de baixo do sol do meio-dia. Sua sede é sede de Deus. Lembrando as escrituras, o salmista canta: “a minha alma tem sede, tem sede do deus vivo” (Sal 42, 3). A sede de jesus é seu desejo de ser solidário à sede do povo. Jesus está pronto a condividir a dor da humanidade a unir-se a ela no seu apelo a Deus. No caminho para Damasco, Paulo de perseguidor de cristãos, transforma-se em apóstolo de Jesus após encontrá-lo. Assume os sofrimentos de Cristo e testemunha,“estou crucificado com Cristo”. São Francisco de Assis em seu Testamento confessa: Como eu estava em pecado me era difícil ir até os leprosos, mas depois que o Senhor me conduziu a eles, aquilo que era amargo se tornou em doçura da alma”. A pesar das duras provas, sofrimentos e dores que possam nos abater nesta vida, não percamos a esperança, porque Deus nos ama, porque Deus nos amou ao ponto de dar a vida de seu filho por nós. 

Sexta Palavra: “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30a)

Jesus passou por um processo injusto. Pilatos não encontrou nele culpa. O motivo, Ele se apresentou como rei dos judeus, porém um rei espiritual, “meu reino não é deste mundo”. Porém, os sumos sacerdotes e o povo inflamado por eles queriam que morresse. Pilatos, assim como Judas negocia com os sumos sacerdotes, propõe uma escolha entre o temido Barrabás e Jesus. O povo ensandecido prefere Barrabás. Pilatos não quer sujar suas mãos com o sangue inocente de Jesus. Equivoca-se totalmente, entregando-o para as autoridades religiosas de seu tempo. Assim se torna também cúmplice da morte de Jesus. Porém, não foi só isto. Cristo morreu para cumprir até o fim a missão que recebera do Pai: “humilhou-se a si mesmo fazendo-se obediente até a morte e morte de Cruz” (Fil 2, 8). Morreu por fidelidade a Deus, morreu por fidelidade à vontade de Deus, que veio em Jesus ao encontro dos pecadores. Quem conduziu Jesus à morte foi o pecado. O filho do homem foi entregue às mãos dos pecadores. Mas este Jesus que vilmente foi condenado à morte, preterido em função dos seus próprios interesses, está à direita do Pai. Sua vida na solidariedade foi a proposta de amor e perdão. Esta é a lição da Cruz. Por isto Jesus diz: TUDO ESTÁ CONSUMADO”. Com esta palavra jesus pode dizer, meu trabalho foi terminado, posso voltar à casa de meu Pai. Não sabemos ainda explicar o porquê do sofrimento. Aquilo que sabemos é que também Jesus o atravessou. Ele deu significado ao sofrimento vivendo o sofrimento pelos outros na solidariedade e no serviço a Deus e a todos os homens. Aquilo que sabemos é que o sofrimento, todas lágrimas e toda agonia humana poderá ser acolhida por nós através de uma escolha pessoal, vivê-las sem sentido, ou através do sofrimento acolhido na fé e na esperança. Não é possível escolher entre a morte e uma vida sem a morte, mas entre morte sem futuro e um futuro de glória na qual a morte nos adentra à vida eterna. São Francisco de Assis acolheu a morte sem medo, expressando na última estrofe do cântico das criaturas: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã a morte corporal, da qual nenhum vivente poderá escapar. Felizes aqueles que ela os encontrar na graça de Deus”

Sétima Palavra: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46b)

A obra da reconciliação que o Pai havia confiado ao seu Filho terminou. Mesmo que aos olhos do mundo pode parecer uma falência, Jesus pode entregar nas mãos do Pai o seu espírito, porque a vitória sobre o pecado e morte está por germinar no solo regado com seu sangue. Jesus morre com a prece em seus lábios: “Em ti, Senhor, me refugiei, jamais fiquei desiludido; pela tua justiça, salva-me. … Inclina para mim o teu ouvido, vem de pressa livrar-me. Livra-me do laço que me armaram, porque és minha força. Nas tuas mãos entrego meu espírito. ” (Sal 31). Esta palavra gritada junto aos céus é a última palavra de jesus na nossa história e revela o mistério mais profundo. Este foi o caminho feito por Jesus. Se morrer quer dizer entregar sua vida nas mãos de Deus, viver, agora, significa, vir de Deus e andar junto dele. A cada um de nós é possibilitada esta estrada, este caminho: carregar a sua cruz atrás de Jesus, como Simão Cirineu; abandonar-se como Jesus nos braços do Pai. Na mesma hora que no Templo se sacrificavam os cordeiros para a Páscoa Judaica, o verdadeiro Cordeiro pascoal da Nova Aliança se oferece santo e sem mancha. Os evangelistas usam o verbo: “SUSPIROU”, deu o último suspiro.  O véu do Templo se rasgou em dois de alto a baixo. Houve um terremoto, os mortos saíram dos túmulos. Um centurião romano, até então, pagão, fez uma extraordinária profissão de fé: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus”. A presença de Deus agora é reconhecida na morte de Cristo na Cruz.

Luciney Martins/O SÃO PAULO
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